Auschwitz: o muro negro e o pugilista polaco
27/01/2016 blog

de Alessandra Giuliana Granata

De acordo com uma intuição de Alexandre Dumas, a realidade não é mais do que o prego em que é pendurada a literatura. Desta forma, o narrador, como um feiticeiro habilidoso, combina verdade e engano até fazer desaparecer os limites indefiníveis que separam um do outro. O sucesso do seu trabalho depende da sua capacidade de subjugar o público. Se, ao perceber que está perante uma ilusão facilmente desmascarável, mesmo assim não faz nenhuma resistência, quase querendo ser enganado, isto significa que o narrador alcançou o seu objectivo.

Il pugile polacco (Rubbettino editore, 122 páginas, 12.00 €) do escritor guatemalteco Eduardo Halfon, é muito mais do que um livro sobre o Holocausto. A obra retira a sua seiva de um judaísmo serenamente rejeitado que continua a embater no muro negro de Auschwitz. Como o profeta bíblico Jonas, Halfon tenta em vão escapar ao seu destino, mas a história do generoso pugilista polaco que salvou a vida do seu avô, não deixa de ter uma ressonância especial no seu coração, atormentando-o e reclamando tornar-se escrita.

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O avô Eduardo tinha tatuado o número de telefone no seu braço esquerdo para não o esquecer. Já tinha esquecido muitas coisas, juntamente com a sua língua materna. Não falava uma única palavra de polaco desde que a guerra tinha terminado. Tinha-o renegado, juntamente com os compatriotas que o tinham traído. Tão-pouco pronunciava as palavras lhe tinham permitido sobreviver. Quando já estava no bloco número 11 de Auschwitz à espera da morte, um homem – um pugilista – na escuridão daquela noite sem esperança, sussurrara-lhe as respostas que deveria dar aos carcereiros alemães para que lhe salvassem vida. Muitos anos depois, quando os números verdes tinham começado a tornar-se cinza juntamente com ele, resolvera-se a contar ao neto o sentido feroz daquele número. Apenas as palavras do pugilista polaco continuavam a permanecer teimosamente fechadas na sua alma. Eduardo, professor de literatura comparada, tinha-se distanciado das suas origens e da religião. Ao ensinar uma turma de estudantes universitários apáticos, é tocado pela alma profunda de um estudante, Juan Kalel, jovem poeta de origem humilde, com a expressão frágil de um roseiral murcho. Na face de Kalel, uma cicatriz talvez deixada por uma catana faz Halfon regressar ao muro negro de Auschwitz. É este apenas o primeiro de vários episódios que levarão o professor judeu cosmopolita a uma longa viagem. Mas a seu lado, entre os pobres da América Latina ou nos cenários grandiosos dos Estados Unidos, paira sempre a sombra de um pugilista polaco sem nome e sem rosto que, numa noite desesperada, pronunciara palavras de salvação.

Auschwitz está fora de nós, mas ao nosso redor

Não é raro que eventos particularmente dolorosos fecundem a alma daqueles que os conseguiram superar. Muitas vezes acontece também que a graça de uma vida poupada seja, ainda que simbolicamente, a passagem de um fim certo para uma nova existência que tem o sabor de uma ressurreição. Aqueles que possuíram o talento da escrita – como aconteceu com Fiódor Dostoievski e Primo Levi – expressaram nas suas obras o grito de dor de quem se encontrou cara a cara com a morte, a conseguiu evitar e teve voz para o contar. Mas também não é raro que os mesmos acontecimentos dolorosos destruam a alma pregando-a ao chão. Então prefere-se enterrar o que se foi, deixando o tormento implodir, ficando sem palavras que o possam expressar. Em L’Angelo Letterario, primeira obra de Halfon a ser traduzida e publicada em Itália, muitas vezes o autor menciona o seu amado avô materno. Tendo em conta o papel essencial que este teve na sua formação, surge a pergunta: quem seria Eduardo Halfon sem o exemplo de generosidade encarnada pelo pugilista polaco? No primeiro conto, Halfon torna-se o “pugilista polaco” de Juan Kalel. Ainda assim, não é importante conhecer as palavras que o professor disse ao jovem, porque o silêncio teve o impacto que devia ter.

Il pugile polacco é um livro surpreendente que esconde, sob a aparência de uma antologia de contos, um romance delicado, mas vivaz, cuja trama unitária fica ao mesmo tempo aberta às expansões que – diz o autor – nunca terminarão enquanto ele for vivo.

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