Fausto e Literatura: desde as origens até ao século xix
26/04/2015 blog

de Giuseppe Avigliano

O século xvi  é um século de astrólogos e alquimistas, caracterizado pela busca da pedra filosofal, através de experiências e fórmulas mágicas. No mesmo período, o mundo da superstição e charlatanismo coexiste com o mundo intelectual, e estes dois mundos estão muitas vezes em contacto no mesmo ambiente e nos mesmos aposentos. Foi a  partir deste choque, que, de alguma forma, nasceu a ciência moderna. Basta pensar que os intelectuais proeminentes da época não são estranhos às várias formas de heterodoxia: Galileo Galilei vende horóscopos, Torquato Tasso acredita na oportunidade de ouvir mensagens de outros mundos, Giordano Bruno pede subsídios prometendo, em troca, revelar conhecimentos ocultos. Não sabemos ao certo quando nasceu Johann Georg Faust. Talvez em 1480. Mas também não é de descartar a possibilidade de ter nascido no início do século. Faust afirma ser capaz de reconstruir as obras perdidas de Platão e Aristóteles, de conseguir repetir os milagres de Jesus e de suplantar  a arte dos alquimistas. Confia ao famoso humanista Filipe Melâncton ter favorecido as vitórias imperiais em Itália e ter feito um voo mágico até Veneza. Parece que, comentando Homero, em Erfurt, fez aparecer alguns heróis perante o público de estudantes. Uma coisa é certa: deixou dívidas em todos os lugares por onde passou  e caiu na pobreza. Uma crónica do Conde Von Zimmern de 1564-1566 informa-nos que Faust morreu em idade avançada, de morte não natural, numa aldeia da Brisgóvia, perto de Staufen, em 1540 ou 1541. O seu corpo foi encontrado num estado lamentável. Gostaria de percorrer brevemente a história da literatura mundial através da obra-mundo Fausto. Percebo a impossibilidade de uma classificação definitiva, da difícil identificação de citações ocultas e alusões difíceis de interpretar num olhar rápido pelas obras relativas a  Fausto. No entanto, penso que é útil fazer uma lista de livros que acompanharam a figura de George Faust no caminho que o viu passar da história ao mito.

A formação do mito

A partir de 1570 – ou seja, cerca detrinta anos após adata presumida da sua morte – começaram a difundir-se publicações que contavam as façanhas de Faust. Em 1587, Johann Spiess publicou o primeiro Faustbuch, Historia von D. Johann Fausten, com 69 capítulos[i]. Foi o primeiro livro sobre Fausto e também aquele que fixou as características essenciais que serão revisitadas nos séculos posteriores por numerosos escritores e artistas. O livro de Spiess obteve um grande sucesso, comprovado pelas cinco reedições da obra e as muitas novas edições aumentadas e renovadas. Seguiu-se uma versão mais extensa de  Georg Widmann em 1599, e a exemplo desta, em 1674, Nikolaus Pfitzer publicou o seu Faust, onde foi introduzido, pela primeira vez na história, o amor por uma rapariga muito bonita, mas pobre, primeira menção à futura Margarida.

Em 1589, em  Inglaterra, Christopher Marlowe publica A trágica história do Dr. Fausto [ii]. O drama segue em pormenor os eventos narrados por Spiess. A evocação de Helena e do seu beijo deveriam recompensar Fausto do céu que quis perder. Fausto toma a forma de uma figura de dimensões titânicas, comparável ao solipsismo dos heróis trágicos de Sófocles. A versão teatral do dramaturgo elisabetano irá prestar-se a uma corrupção cómica da história, através da inserção de cenas engraçadas e mecanismos cénicos  surpreendentes.

Goethe assistiu à  encenação da obra quando tinha aproximadamente vinte anos, em Frankfurt ou Estrasburgo. O conflito entre imaginação e realidade é o tema incontornável do Fausto de Marlowe, um dualismo que tem uma correspondência clara na doutrina de Orígenes – formulada na segunda metade do século iii – que configura o mal em sentido privativo, isto é, como negação do ser: malumest non ens. O mal, em última análise, é a privação da realidade. É a escolha da sombra em vez da substância. Quando Fausto escolhe ser um espírito para transcender as limitações do homem, torna-se um fantasma, uma sombra de si mesmo. O controlo  mágico da natureza, que Fausto tanto desejava, fica reduzido a truques e brincadeiras completamente inúteis e triviais.

Marlowe, tal como Goethe, para reescrever Fausto toma como referência o Volksbuch de 1587; no entanto, dois mundos diferentes separam os dois grandes autores: os últimos raios do Renascimento conotam o Fausto de Marlowe, o espírito do romantismo, o de Goethe. Em 1725 aparece um folheto assinado por Christliche Meynender – um pseudónimo transparente, que que significa algo como “alguém que pensa como um cristão” – em que é possível ler um primeiro juízo crítico sobre a lenda de Fausto.

Supõe-se que Goethe leu este livro quando era pouco mais do que uma criança. Em 1786 são publicados os inéditos teatrais de Gotthold Ephraim Lessing, e é encontrado um fragmento sobre a  história de Fausto. Lessing, filho do movimento iluminista, desata o nó faustiano decretando a impossibilidade para Satanás de derrotar a humanidade e a ciência. Lessing é o primeiro a não condenar Fausto pela sua sede de conhecimento. Esta nova visão revolucionária afectará o drama de Goethe, que termina, de facto, com a salvação do protagonista.

Vale a pena mencionar a questão crítica. Grande pagão o primeiro, católico por antonomásia o segundo: os dois são unidos por um nó que concerne o Faust. Uma das lendas que, de forma bastante misteriosa, confluíram no mito de Fausto é a de São Cipriano e Santa Justina. Baseando-se nesta lenda, Pedro Calderón escreveu um dos  seus melhores dramas, El Màgico prodigioso[iii]. A acção ocorre em Antioquia no século iii. Cipriano é um pagão que, na solidão, efectua uma profunda reflexão sobre os deuses. Quando está quase a entender que os deuses são falsos e que existe apenas um deus, o diabo vai ao seu encontroe, para distraí-lo dos seus estudos, oferece-lhe interesses mundanos. Cipriano apaixona-se por uma bonita donzela, Justina , e, para conquistá-la, vende a sua alma ao diabo por um ano. Justina resiste à sedução de Cipriano, refugiando-se em oração a um Deus desconhecido para ele, o dos cristãos. No final do drama, Justina é condenada à forca por causa das perseguições anti- cristãs, o queleva Cipriano a converter-se à mesma religião. Os dois são executados juntos, mas um cataclismo espectacular manifesta a sua entrada no reino dos céus. As semelhanças com a história de Fausto são evidentes. O próprio Goethe, depois de ter lido uma tradução alemã da peça, escreveu: “É o tema de Dr. Fausto, tratado com incrível grandeza”[iv]. É difícil excluir que a leitura de El Màgico prodigioso não tenha influenciado o final do Fausto II, onde, ao contrário do que estava previsto na fonte do século xiv, Faust sobe  ao céu juntamente  com Gretchen.

Remonta ao ano 1829 a publicação de uma tragédia de particular interesse, Don Giovanni e Faust de Christian Dietrich Grabbe[v].Trata-se de um autor alemão pouco estudado, que encena um intenso confronto entre dois mitos literários paradigmáticos do velho continente: Fausto incorpora as características do homem nórdico, fechado em si mesmo, que anseia pelo  conhecimento e  podere Don Giovanni, extrovertido e libertino, representa o espírito dos povos do sul. Escrito na década de trinta do século xix , o Fausto de Nikolaus Lenau, por seu lado, é um dos cumes poéticos do niilismo europeu. No delicado momento pós-Revolução Francesa, esta obra apresenta a ferida sofrida pela Europa contemporânea, abandonada portodas as certezas e envoltanum pessimismo universal, que transforma o antigo valor do conhecimento numa sentença de condenação existencial. O caminho que Fausto realiza em busca do sentido da existência, acompanhado enganosamente por Mefistófeles, leva-o a descobrir o vazio total e, assim, a sentir-se divorciado de Deus, percebido como um poder maligno. Fausto acaba então por se  suicidar.

[i]J.SPIESS, Storia del Dottor Faust, ben noto mago e negromante, Milano, Garzanti, 2006

[ii]Para a versão italiana, cf. C.MARLOWE, Il dottor Faust, Milano, Mondadori, 2004.

[iii]CALDERON DE LA BARCA, Il mago dei prodigi, Torino, Einaudi, 2003.

[iv]Em 1881, a Academia Real Espanhola de História anunciou um concurso para tentar resolver o problema “Goethe e Calderón”. A competição foi ganha por Antonio Sanchez Moguel, que concluiu –de forma aproximativa, , anacronística, díriamos nós  – que o Fausto de Goethe é absolutamente independente do  Màgico.

[v]Cf. Grabbe Christian D., Teatro. Don Giovanni e Faust – Annibale, Genova, Costa & Nolan, 1997.

Facebooktwittergoogle_plusmail



« »