Cléobis e Bíton: a verdadeira felicidade em Heródoto
09/11/2015 blog

de Giulia Valente

No primeiro livro das Histórias de Heródoto encontramos, juntamente com a digressão novelística sobre Creso e Sólon, a história de Cléobis e Bíton. Eles são para Heródoto um exemplo da verdadeira felicidade, que Heródoto caracterizou como ὄλβος e oposta à boa sorte (εὐτυχίη), que é passageira e momentânea. A personagem Sólon, respondendo à pergunta do rico rei Creso da Lídia, de quem é hóspede, sobre quem foi o homem mais feliz, conta a história de dois jovens irmãos de Argos, Cléobis e Bíton, e proclama-os ὄλβιοι: não porque « [tivessem] os meios suficientes para viver e, além disso, um indubitável vigor físico» (Heródoto, Histórias I 31)1 mas pela felicidade alcançada no ponto da morte. Na verdade, de acordo com o pensamento do historiador iónico ecoado pelo seu personagem, os deuses terrestres invejosos (φθονερόν) podem fazer com que a sorte terrena mude de direcção, pelo que só no final da vida é possível provar ter desfrutado de uma felicidade estável e duradoura.

O conceito de ὄλβος encontra a sua máxima expressão no exemplo dos dois jovens argivos quando, tendo a mãe deles que chegar ao templo de Hera para a celebração que a sua cidade oferecia a esta deusa, Cléobis e Bíton ofereceram-se, na falta de bois, para puxar pessoalmente o carro e, depois de o terem feito por quarenta estádios, conseguiram chegar ao santuário.

Aqui foram muito admirados pela multidão pela empresa realizada; e a mãe deles, para os recompensar por este acto de benevolência, implorou aos deuses para lhes dar o melhor que um homem pode receber. Após esta oração, os dois jovens, que tinham dormido no santuário, morreram durante o sono.

Este passo, segundo os críticos, é inspirado no famoso mito das cinco idades do homem, que parece ter aparecido pela primeira vez com o poeta épico Hesíodo e que tem, naturalmente, um paralelo interessante no episódio bíblico da expulsão do Éden. De acordo com uma concepção do tempo como declínio gradual e decadência, o mito divide a História em cinco períodos, da Era do Ouro, abençoada e feliz para os homens, até à Idade do Ferro, em que levam uma vida de labuta e dor; períodos intercalados pela Idade da Prata, Idade do Bronze e Idade dos Heróis.

Agora, na Idade de ouro, os homens primitivos morriam como «tomados pelo sono» (Hesíodo, Trabalhos e Dias 116) 2 e «viviam como deuses, o coração inconsciente da dor, completamente protegidos contra a fadiga e as lágrimas, nem os perseguia a miserável velhice» (Trabalhos e Dias 112-114)3 exactamente como Cléobis e Bíton, que morreram jovens e não conheceram nem velhice, nem dor.

A felicidade que Heródoto entende como ὄλβος que é aqui representada, parece portanto referir-se a essa visão utópica e idealizada que Hesíodo nos dá, descrevendo a primeira estirpe da progénie dos homens.

A ideia de um feliz mundo primitivo onde todos os homens são φίλοι μακάρεσσι θεοῖσιν (“caros aos

deuses beatos”: Trabalhos e Dias 120), parece reflectir-se, em Heródoto, nas personalidades individuais, que, por viverem de maneira equilibrada, podem receber a graça divina de um eterno sono feliz. Em particular, a história de Cléobis e Bíton, proposta como manifesto de uma concepção do homem baseada no pessimismo, é a representação de que a fortuna humana é passageira: o homem não é o autor do seu próprio destino, de repente τὸ θεῖον pode fazer mudar de direcção a sua sorte; então talvez seja melhor morrer, só assim se é imune à dor, e só na ausência de dor – fórmula também expressa por Hesíodo (Trabalhos e os Dias, 112) – é possível viver feliz.

1 Tούτοισι ἐοῦσι γένος Ἀργείοισι βίος τε ἀρκέων ὑπῆν, καὶ πρὸς τούτῳ ῥώμη σώματος τοιήδε.

2 Θνῇσκον δ᾽ ὥσθ᾽ ὕπνῳ δεδμημένοι.

3 Ὥστε θεοὶ δ᾽ ἔζωον ἀκηδέα θυμὸν ἔχοντες νόσφιν ἄτερ τε πόνων καὶ ὀιζύος: οὐδέ τι δειλὸν γῆρας ἐπῆν.

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