Eva Luna e Xerazade: o poder da literatura
22/05/2015 blog

de Alfonso Natale

 

«El rey ordenó a su visir que cada noche le llevara una virgen y cuando la noche había transcurrido mandaba que la matasen. Así estuvo haciendo durante tresaños y en la ciudad no había ya ninguna doncella que pudiera servir para los asaltos de este cabalgador. Pero el visir tenía una hija de gran hermosura llamada Scheherazade… y era muy elocuente y daba gusto oírla…»

O excerto da moldura narrativa de As mil e uma noites que Isabel Allende escolheu como epígrafe para o seu livro Cuentos de Eva Luna, citado de forma estratégica, desperta no leitor a sugestão da  personagem fabulosa da princesa Xerazade, jovem de grande beleza e hábil narradora, capaz de cativar o destinatário com o prazer da audição. A bela Xerazade é devidamente aproximada, pela autora chilena, à sua Eva Luna, heroína proveniente dos confins da terra, filha de uma mulher da floresta amazónica e de um indiano de olhos amarelos, nascido no ponto onde se encontram cem rios. Como Xerazade, Eva conhece as histórias de muitas mulheres e homens: as que lhe contou a sua mãe, ávida leitora; as que aprendeu durante a sua vida aventurosa, em que contactou com pessoas de todos os tipos e condições; aquelas que ela própria, com uma imaginação fértil, inventa. Crescida na solidão de uma sala de estar cheia de múmias, depois confiada à madame de um bordel, fugindo de seguida para uma aldeia da floresta e mais tarde injustamente acusada de assassinato, induzida pelo amor de um homem a participar na guerrilha sul-americana (onde encontra o verdadeiro amor, num jornalista austríaco), a resoluta Eva não se deixa entristecer ou desanimar pelas dificuldades que vive, nem nunca perde a sua força de carácter e coragem. Muitas vezes, as suas histórias permitem-lhe ultrapassar com sucesso os obstáculos da vida. Mostrando a mesma coragem, Xerazade casa com o sanguinário Xariar, sultão da Tartária que, odiando todas as mulheres por ter sido traído pela primeira esposa, todas as noites manda trazer uma virgem, casa com ela e manda-a matar na manhã seguinte. Mas Xerazade está confiante e consciente da sua força, de modo que é ela a animar o seu pai, o grão-vizir, que, por três anos, todas as noites trouxe uma mulher ao Sultão e, naquele momento, é forçado escolher entre as suas duas filhas, as únicas jovens ainda vivas, para cumprir a ordem de Xariar: ele não deverá ter medo de dar a mão de Xerazade em casamento, porque ela, com a sua astúcia, elaborou um plano, e a sua capacidade de alegrar os espíritos através das suas histórias irá também conseguir vencer o ódio  obstinado e absurdamente desmedido do esposo. Xerazade é uma personagem bem conhecida no Ocidente graças às Mil e Uma Noites, mas é no mundo árabe que é exaltada como uma heroína corajosa e uma das poucas figuras míticas do sexo feminino. A socióloga marroquina Fatima Mernissi diz que ficou surpreendida ao ver que, para muitos ocidentais, a personagem não passa de uma dama de companhia amável e ingénua, que, vestida com roupas fabulosas, conta histórias inofensivas. Xerazade é, pelo contrário, «uma estratega do pensamento poderoso, que utiliza o seu conhecimento psicológico dos seres humanos para os fazer andar mais rápido e saltar mais alto». À semelhança do que faz Fatima Mernissi, em Sonhos proibidos , o seu romance autobiográfico inspirado na sua infância no harém (a citação está na pagina 18, linha 4 da edição italiana). A sagacidade com que Xerazade interrompe a história no momento de maior suspense faz com que o sultão lhe poupe a vida por mais um dia, pois quer saber o fim da narrativa. Mas o mesmo acontece uma segunda noite, e depois uma terceira, uma quarta, e assim durante mil e uma noites. Até que, por fim, o sultão se apaixona por Xerazade e muda a sua opinião sobre as mulheres. Milagrosamente, os contos da sua noiva atenuaram e depois fizeram desvanecer o ódio do sultão, mitigaram a sua crueldade e barbárie. Mas como aconteceu esse milagre? Com as suas histórias, Xerazade não só encanta e seduz o seu marido, como lhe abre novas perspectivas, lhe revela novos mundos, lhe desvela o ponto de vista do outro; é assim que ela trata, cura e adoça o carácter do sultão. Xerazade percorre com a fantasia enormes distâncias, revela factos e costumes de povos próximos e distantes, observa e compreende a alma de homens e mulheres de todas as condições: Xariaré capaz assim de conhecer e depois de compreender aqueles que são diferentes dele ou vivem longe dele e, através desta consciência, de se compreender a si mesmo. Parece legítimo reconhecer na narração sedutora da persaXerazade – e na sua gémea sul-americana Eva Luna – o símbolo da mesma literatura (oral ou escrita). Xerazade e Eva Luna representam o conhecimento e a sabedoria que podemos aprender com os livros ou, antes que os livros fossem inventados, com a poesia oral. Da mesma forma que o ódio do sultão é mitigado ao ouvir as histórias da sua jovem esposa, também os seres humanos são civilizados através do conhecimento decorrente da narrativa[1], que transmite um património de usos, conhecimentos, experiências, que caracterizam o ser humano no seu aqui e agora, permitindo a cada homem e a cada povo conhecerem-se a si mesmos. Assim como Xerazade fala de povos e terras distantes, e como Eva Luna tem a empatia de quem sabe ouvir, a literatura revela mundos, dimensões e pontos de vista diferentes, permite ao leitor-ouvinte enriquecer-se, como Xariar, com o outro, e tornar-se assim consciente de si mesmo, de forma dialética, no sentido etimológico de dialogante. Isto explica o orgulho e a audácia das duas narradoras, imagem de quem tem uma mente aberta e receptiva à realidade, desprovida de preconceitos que só uma profunda compreensão pode erradicar.

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Bibliografia essencial

Isabel Allende, Eva Luna, Feltrinelli, Milano 1987.

Isabel Allende, Eva Luna racconta Feltrinelli, Milano 1990.

Fatema Mernissi, La terrazza proibita. Vita nell’harem, Giunti, Firenze-Milano 1996.

[1]É nesta direcção que vão  os estudos em psicologia social e cognitiva, que individuam no pensamento narrativo (distinto mas não em oposição ao pensamento lógico-matemático) a ferramenta interpretativa e cognitiva do homem como ser social (Bruner).

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