Cannes: nenhum prémio para os italianos. É o festival, beleza!
25/05/2015 blog

de Annalisa Vecchio 

 

O flop dos filmes italianos em Cannes? Não importa, já sabemos como funcionam os festivais; o mercado eo público irão compensá-los. É possível que ganhem um Oscar, como aconteceu há dois anos com Sorrentino. O nome muda, mas a  cada decepção estas palavras – talvez não exactamente estas – são repetidas como um mantra. Não é que sejam falsas, mas, na verdade, nunca como antes o espanto  e a decepção foram tão grandes. No entanto, não esqueçamos que os filmes italianos foram aclamados pela melhor crítica internacional, tanto o Guardian como o Variety, e comprados para todo o mundo. A decepção é compensada pelo facto que foram efectivamente realizados, e que são mesmo bons. Já tanto foi escrito sobre Youth, Mia madre e sobre Il racconto dei racconti que talvez já não haja muito a acrescentar. A surpresa, especialmente no que diz respeito a  realizadores de quarenta anos como Sorrentino e Garrone, é que estes não repetiram aquele “motivo único” que Alberto Moravia atribuía a  um determinado tipo de cinema, para justificar a repetição, às vezes aborrecida, de filme para filme, das mesmas estruturas narrativas , nos chamados “filmes de autor”. Pelo contrário, há uma continuidade diferente na evidente diversidade dos nossos autores, a saber, o desejo de contar – com micro-expressões e a sumptuosidade de paisagens espectaculares, tanto humanas como  naturais – a beleza em cores brilhantes, mesmo queno centro da história esteja o pudor em expressar estas mesmas paisagens.  Isto é especialmente evidente em Youth, onde a juventude, mais do que uma idade,  residena coragem de viver as emoções. Talvez mais convencional, mas sempre no estilo de Moretti, é a elaboração da dor da espera da perda em Mia Madre. No  filme de Garrone, a dor é tratada de uma forma mais corajosa:em vez do pudor, sucedem-se as  paixões mais fogosas e muitas vezes indizíveis.

Il racconto dei racconti baseia-se no agora conhecido Lo cunto de li cunti de Giambattista Basile, autor barroco. Trata-se de um texto muito difícil: contos de fadas em napolitano antigo, provenientes de uma cultura rural pré-cristã e que se transformam em representação, verdadeira mas antinaturalista, do mundo visionário e grotesco, das inquietações  de uma era em profunda convulsão. Garrone, no entanto, revelou-se – nas palavras de Pier Paolo Pasolini, que com O Decameron e Os Contos de Canterbury efectuou uma operação semelhante  – mais moderno do que os  modernos. Sim, porque aceitou o desafio de trabalhar dentro de um género, o fantasy, que agora corre o risco de ser rotulado “à italiana”, depreciativamente, como o foram os “western spaghetti” e a comédia dos anos ‘60. Mas os dez primeiros minutos (aquilo que antigamente se chamava a primeira bobina) são suficientes para se perceber que o realizador italiano revisitou, moldou e deu uma forma nova ao género, de forma a adequá-lo à sua história pessoal. Falar de fantasy não deve ser motivo para franzir o nariz, a desde O Senhor dos Anéis até à  série de tv Game ofThrones, este género – talvez demasiado espectacular e dependente de efeitos digitais que acaba por perder de vista a metáfora e o sentido da história – mostrou uma flexibilidade para se adaptar a todas as necessidades da ficção. Claro que, como explicou pela primeira vez Francesco Durante no Corriere del Mezzogiorno, estamos aqui em pleno universo barroco, não há meio-termo. E aqui reside toda a diferença relativamente ao fantasy. Carmine Garrone, mesmo com histórias grotescas e muitas vezes horríveis, molda o seu material, de modo a torná-lo um prazer para os olhos, sem trair o texto literário. Falamos de sentimentos, mesmo de fortes paixões, sem concessões moralistas. Garrone reescreve o original tornando-o um genuíno produto de arte cinematográfica. Uma arte que deve muito a Luchino Visconti e Michelangelo Antonioni, na continuidade daquela que nos últimos 30 anos está ainda à procura de uma definição, e que, com Garrone e Sorrentino, parece ter encontrado um impulso vital moderníssimo. Parece que o mesmo Garrone já já está  a trabalhar numa nova série de TV, não a partir do filme, mas sim do texto de Basile. As outras histórias, contadas por velhas bruxas, irão falar de princesas despertadas não por beijos mas por actos menos nobres, e de Cinderellas que matam as madrastas. Quem sabe se será possível evitar os “super-efeitos digitais”, já utilizados no filme, a favor da grande habilidade dos artesãos do cinema.

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O filme de Garronebaseia-se em La pulce, la cerva e la vecchia scorticata de Giambattista Basile, publicado pela Donzelli, na versão de Bianca Lazzaro. Para um estudo mais aprofundado, há textos sobre Lo cunto de li cunti e toda a obra de Giambattista Basile, publicados nas edições G. Petrini. E também: G.B. Basile, Il Pentamerone, ossia la fiaba delle fiabe, introdução de Benedetto Croce, prefácio de I. Calvino, Bari, Laterza, 1974. G.B. Basile, Lo cunto de li cunti, o texto da primeira edição de 1634-1636, com tradução, notas, editado por M.R., Milão, Garzanti, 1985.

Giambattista Basile, Il racconto dei racconti, ovvero il trattenimento dei piccoli, tradução de Ruggero Guarini, Adelphi, 1994, segunda edição.

 

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