La ferocia, de Nicola Lagioia
24/06/2015 blog

de Giuseppe Avigliano

Há um corpo sangrento de mulher que caminha, à noite, no meio da faixa de rodagem da circular. E há umfeixede luz cortado  pelos faróis de um camião, que ilumina brevemente a mulher.

La ferocia é um romance construído, também, através de imagens. E esta é a primeira que se impõe  ao leitor. Está lá: requer o seu próprio espaço de reflexão e uma dose de confiança incondicional no narrador. Não estamos num filme de Quentin Tarantino. Nem num cenário pré-apocalíptico. Estamos na circular de Bari. Hoje em dia. Essa mulher é Clara Salvemini. Contar o microcosmo familiar dos Salvemini, situar uma história no sul da província italiana, escrever sobre festas de sexo, corrupção, desastres ecológicos, corredores preferenciais entre tubarões empresariais e os submundos do governo, delatores na magistratura, saúde pública, cocaína… É preciso ter coragem, e muita teve Nicola Lagioia. Correr atrás desta história, juntar as peças de um dominó que pode sucumbir a qualquer momento ao demónio da credibilidade (e da falta de credibilidade) não é uma empresa literária pequena. Para o leitor, seguir as páginas desta história,  é igualmente difícil. Os níveis narrativos  sucedem-se como as páginas de um jornal que não deixa espaço para os faitsdivers: alterna títulos de notícias em letra grande e artigos sobre corrupção, com notícias sobre a desordem social e catástrofes ambientais.

O refém da ferocidade. O corpo de Clara.

Clara é a primeira personagem que aparece nas páginas do livro. Ela dirige-se para a sua morte. Esta aparição no palco do romance é a sua única e terrível denúncia . Não pede nem se apropria de qualquer redenção. Vai apenas morrer nacircular, à noite. Os seus passos conduzem-na sob o único raio de luz que ainda mantém vivo o jogo da verdade. Tudo o resto é uma zona cinzenta. É a sombra que dirige  todo o jogo da vida. Michele Salvemini não seria o homem de negócios milionários que é se não tivesse cumprido todas as exigências do decálogo do mundo do crime: subornos, visitas de cortesia, amizades de conveniência, compromissos com a máfia. O seu património, os estaleiros de obras em toda a Europa, as moradias, são as ameias das torres de um castelo construído com a lama e o sangue.

Michele e a vingança dos indiferentes. 

Michele é o filho de Vittorio. Não da sua mulher. A amante, uma mulher que poderia ter metade de sua idade, morre no parto. Quando Vittorio chega a casa com aquela criança desconhecida, Anna, sua esposa, aceita-a com um sorriso mal disfarçado pela morte da rival. Duvido que o nome da personagem seja uma coincidência. Creio que não. Porque não consigo evitar pensar em Michele Ardengo, em Os indiferentes, de Alberto Moravia. Michele Salvemini é o epígono inevitável de Michele Ardengo. Posto de lado ao longo de toda a sua vida numa família – os Salvemini– que sempre o tinha considerado não merecedor da mesma atenção dos irmãos, expedido para as lacunas legislativas das clínicas psiquiátricas, forçosamente afastado da meia-irmã Clara. Michele volta por  ocasião da morte desta última e a sua quota de ferocidade aspira a uma vingança não só familiar, mas intergeracional, trans-literária, definitiva.

Ruggero, Gioia, Annamaria.

Os outros membros da família Salvemini limitam-se a preencher os espaços vazios  deixados pela figura monumental do pai. Ruggero é um dos médicos mais promissores de Itália. Nunca irá ganhar um Prémio Nobel, embora tenha todas as capacidades para tal. O talento feroz de um Salvemini, que relega para a mediocridade tudo o que há de bom ao seu redor.

Gioia e Annamaria, filha e esposa, são apenas o remate de uma casa que precisa de parecer humana – dar calor – em  jantares importantes, quando o ambiente familiar deve influenciar a escolha decisiva de um juiz ou de outra personalidade importante.

Solipsismo de Vittorio Salvemini

Vittorio é a figura que domina o romance. É ele que  tece os fios, criando enredos, e desfaz também  a trama, se necessário. A ferocidade é a rota principal para o sucesso, e Vittorio já percorreu todo este caminho. Não contou, porém, com uma coisa: ferocidade gera ferocidade. O cinismo de Ruggero, a vingança de Michele, o sorriso mortal de Annamaria, as dissimulações de Gioia. Vittorio é o herói solipsista da idade moderna. Incorpora todas as suas feridas e opressões. La ferocia é um romance que requer um julgamento demorado. É preciso deixar o corpo de Clara pendurado ao fio de luz que a ilumina, antes da saída de  cena. Ali  na  circular, onde estamos acostumados a cortar a cidade, para fugir da agitação do tráfego. O romance de Lagioia é um abanão. Foca a província, para falar da nação. Paira nas sombras, para destacar a luz. Lê-se em poucos dias; não é facilmente digerível.

Facebooktwittergoogle_plusmail



« »