Jorge Amado e a epopeia dos meninos da Bahia
02/12/2016 blog

de Alexandra Antunes

«Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem». A noite caiu sobre Salvador. Junto ao cais, num armazém que guarda mercadorias de embarque, os Capitães da Areia têm o único lugar a que podem chamar casa. E cada menino só pode ver nos outros aquilo a que corresponde, vagamente, a noção de família.

Em 1937, Jorge Amado (1912-2001), escritor brasileiro, usa as palavras de um romance para abrir uma janela para o seu país. Depois do mar da Bahia, existe um país onde um povo luta contra as diferenças sociais, mostrando uma forte necessidade de mudança. Esta ousadia literária conduz o autor à prisão e à queima de exemplares em praça pública.

Através do grupo dos Capitães da Areia, Jorge Amado transforma meninos órfãos abandonados, que se entregam ao crime por não terem outra alternativa, em heróis. Numa epopeia que enaltece aqueles que, pelas circunstâncias da vida, são obrigados a crescer demasiado depressa, há espaço para todo o tipo de crianças. Pedro Bala é o líder do grupo e influencia todos como um pai; Volta Seca admite apenas querer continuar a viver no crime; Professor é apaixonado pelos livros e pelo desenho; Gato é um quebra-corações incorrigível; Boa-Vida não quer mais do que sambar e aproveitar os dias, Sem-Pernas aproveita a sua deficiência para fazer grandes assaltos e Dora, a menina que se junta ao grupo, é a figura maternal por excelência. E são tantos os que, tal como estes – embora não lhes sejam atribuídos nomes –, vagueiam pela cidade de Salvador na esperança de repor aquilo que lhes foi tirado.

Cada «Noite da Grande Paz» é um fim e um começo para estes meninos que têm «uma estrela no lugar do coração». Nunca se sabe o que trará o dia seguinte. Um surto de varíola assola a população, a polícia persegue os que praticam o crime, os planos dos assaltos talvez não venham a correr como planeado, as revoltas no cais podem trazer problemas aos manifestantes. É esta azáfama que Jorge Amado quer gritar. Quer dizer «Olhem para nós!», quer mostrar um Brasil que não vive apenas do calor e dos ritmos mexidos. A vida dos Capitães da Areia assemelha-se ao carrossel que chega à cidade: voltas estonteantes são dadas, e pouco ou nada à sua volta muda.

Diz-se que a língua portuguesa, quando escrita do outro lado do oceano, ganha uma melodia diferente. As palavras dançam no papel de uma outra forma – vão sambando à nossa frente, num vocabulário por vezes desconhecido àqueles que não falam português do Brasil. Jorge Amado, com uma escrita fluída e natural, até mesmo algo crua, conta uma história com cor, aconchegante para quem lê, apesar de dura para os protagonistas. As aventuras dos Capitães, nos areais e nas ruas da cidade, entre fugas à responsabilidade e entregas ao amor clandestino e irresponsável, chegam-nos de mansinho, com imagens simultaneamente bonitas e cruéis que tocam o coração.

Jorge Amado venceu a censura. Apagou a fogueira que lhe devorou os livros. As palavras de um jovem brasileiro de 25 anos chegaram até nós e ainda conseguem mudar vidas. E se, numa viagem ao interior do Brasil, talvez ainda consigamos encontrar o eco destes meninos descalços e sujos, é apenas para nos lembrarmos que há sempre algo mais a mudar no mundo.

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